quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O silêncio da mídia sobre a memória das ecologistas gaúchas

A coragem alheia de Magda Renner que o jornalismo tanto usou.


Ou: O insulto à memória das pioneiras ecologistas do RS


Magda Renner, ambientalista (1926-2016)

Por ANDRÉ PEREIRA*

Fora do estado (RS) nos últimos dias, fiquei pasmo ao me informar sobre o lacônico registro da morte de Magda Renner, na terça- feira, dia 11 de outubro, nos meios de comunicação comerciais gaudérios.

O Correio do Povo sequer noticiou.

O Jornal do Comércio foi estridentemente econômico em rodapé de três colunas.

Mas a Zero Hora fez uma materiola indecente de tão rasa e machista.

Em duas colunas, Magda é simplesmente reduzida a uma amazona que saltava montada no cavalo chamado Guarani e a uma das ambientalistas “capitaneada” por José Lutzenberger.

A contundência da superficialidade beira a um insulto à trajetória, um desrespeito à memória e um equívoco jornalístico histórico.

Mais impressionado ainda me senti ao observar um veterano jornalista da RBS responder, nas redes sociais, a uma colega militante ambientalista, que deveria, ela sim, escrever sobre dona Magda e tentar persuadir um dos editores do jornal a publicar o artigo, como se o assunto só fosse limitado a um ardor pessoal da militância ecochata.

Conheci pessoalmente o profissional e acredito que não estava eivado de turvas intenções.

É simplesmente o modo como a mídia de negócios trata o jornalismo de entretenimento e sem memória dos dias atuais.

Basta ver a lauta cobertura dada à morte de um funcionário da Rede Globo que interpretava telenovelas ou a generoso espaço intermitentemente concedido a heróis fugazes, como o juiz de Curitiba que certamente terá glória tão passageira quanto foi efêmera a de seu inspirador italiano, que abriu caminho para a corrupção redobrada de Silvio Berlusconi.

A sociedade gaúcha deve muito à jornada consistente de mais de quatro décadas de Magda Renner - que atuava indissociavelmente com a parceira Giselda Castro e também com o suporte decisivo de Hilda Zimmermann - o trio conhecido como as pioneiras da ecologia – dedicada à luta pela melhor qualidade de vida de todos.

Giselda Castro
Preferiam sempre ser chamadas de ecologistas ao invés de ambientalistas porque não defendiam apenas o meio ambiente, como o jargão midiático induz.

Hilda Zimmermann
A ecologia é muito mais do que preservar riquezas naturais, laurear a flora e enaltecer a fauna.

É uma opção de existência que não admite a exclusão social e requer um cidadão ativo e protagonista, tudo que tanto assusta as elites e os poderosos.

Para a ecologia, a pobreza é gerada pelo nosso modelo de progresso.

Os jornalistas gaúchos têm uma dívida impagável com Magda, assim como possuem saldo impossível de quitar com Giselda, Hilda e os demais seguidores de José Lutzenberger -todos já falecidos e construtores de um legado, como se vê, com frágeis herdeiros.

Foram ecologistas que nos anos 1970 e 1980 permitiram que a imprensa rompesse as grilhões da censura e usasse esta coragem alheia para enfrentar a ditadura e criticar os governantes de verde oliva.

Eram essas senhoras cinquentonas, da sociedade porto alegrense, que saiam às ruas, com megafones e cartazes, liderando passeatas que terminavam no Praça da Matriz, no fulcro do governo do arbítrio, empoleirado no Palácio Piratini.

Iam a Brasília fustigar os generais, argumentar que a política econômica dos ditadores penalizava os mais pobres.

Corriam o mundo, viajavam por todos os continentes, enfrentavam multinacionais, como a norueguesa Borregaard, órgãos como o FMI e megaempresas como a Volkswagen, que se apropriava da Amazônia.

Foram tais ecologistas que convenceram os parlamentares do Palácio Farroupilha que os cidadãos deveriam ter acesso a reuniões de comissões permanentes da Assembleia gaúcha e, graças à iniciativa, o deputado Antenor Ferrari teve apoio sólido para elaborar, em 1982, a primeira lei de controle de venenos agrícolas no Brasil que serviu de modelo para outros estados, embora sofra constante combate do agribusiness nacional e internacional.

Quantas manchetes, chamadas garrafais e páginas caudalosas que atraiam leitores, elas produziram para gaudio das empresas de comunicação e da fertilização dos jornalistas acautelados pelo temor dos quartéis ?

Mas eram essas mulheres que, sem alardear o feminismo intrínseco, eram monitoradas de perto pelo famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI), como revela o filme “Substantivo Feminino”, de Daniela Sallet e Juan Zapata, que será lançado em breve.

É certo que a imprensa mudou muito ideologicamente nos anos mais recentes quando passou a privilegiar, escandalosamente, os interesses dos seus anunciantes, patrocinadores e cupinchas do uisquinho importado de Miami pela casa grande.

E hoje, muito provavelmente, Magda, Giselda e Hilda seriam criminalizadas, como são os movimentos sociais, os partidos políticos e as instituições públicas.

Porque estariam, possivelmente, na Esquina Democrática, mais uma vez, com megafones, faixas e cartazes, atrapalhando o trânsito, puxando passeatas contra grandes incorporadoras de empreendimentos imobiliários ruidosos, a apropriação do cais do porto, a devastação na fazenda do Arado, a do shopping Belvedere nas matas do Jardim Botânico e tantos outros absurdos que atentam contra a mobilidade e a dignidade urbana, que passam silenciosamente pelas redações, desviam sorrateiramente pela Câmara de Vereadores e são bancadas pela prefeitura de tantos interesses privados, sem que os cidadãos possam decidir se é o que querem para sua cidade e suas vidas cotidianas.


*André Pereira é jornalista. 
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CRONOLOGIA

Algumas ações da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), a partir de 1974 presidida por Magda e cuja vice presidente era Giselda Castro, dão uma ideia da dimensão das pioneiras ecologistas.

1970 – A ADFG participa do Conselho Brasileiro de Entidades Femininas, fundada no Rio de Janeiro em 12 de outubro

1971 – É fundada em Porto Alegre a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), pioneira entidade ecologista do RS e do Brasil que questionará fortemente a política econômica do governo brasileiro.

1972/1973 –O chamado Caso Borregaard marca uma exemplar revolta popular, estimulada pelas organizações como ADFG e Agapan, contra a poluição mal cheirosa de uma fábrica de celulose norueguesa instalada às margens do Guaíba. Com a forte mobilização dos moradores de Porto Alegre e protestos no estado, o governo foi forçado a fechar a indústria que mudou de nacionalidade, nome e razão social.

1974 – Há uma virada na ADFG com a criação do Setor de Ecologia. Com a presidência de Magda Renner e a vice presidência de Giselda, inicia-se uma parceria para sempre entre as duas.

1975 - Participa no 1º Encontro Nacional sobre a Proteção e a Melhoria do Meio Ambiente, que ocorreu em Brasília ;
Promove o 1º Encontro Comunitário pela Proteção do Meio Ambiente, na PUCRS;

1976 – como resultado das campanhas da Agapan e ADFG pela preservação das ilhas do Guaíba em seu estado natural, foi criado o Parque Estadual do Delta do Jacuí;

· Participa na Assembleia Médica Mundial da Associação Médica Brasileira (AMB)

· Denúncia incêndio promovido pela Volkswagen na Amazônia, ganha grande repercussão da imprensa nacional e internacional;
1978– Lançamento da Operação Hermenegildo na praia do extremo Sul do RS, onde afundou o navio Taquari, espalhando carga extremamente tóxica. A operação tinha o objetivo de reivindicar a proibição da entrada de substâncias químicas perigosas já proibidas para uso, mas não para fabricação, em seus países de origem;

· Promoção da campanha “Alimentos Sem Venenos”

· A campanha de repúdio ao Projeto Ouroville teve protesto, publicações, entrevistas e passeata até o Palácio do Governo, na Praça da Matriz, contra a criação de um loteamento urbanístico da Empresa Agro Pastoril Barra do Ouro, nas encostas de uma área de proteção ambiental, nascentes de rios e matas nativas na Serra Geral, em Maquiné e Santo Antônio da Patrulha ;

· 1980 -Nos Estados Unidos, são feitos os primeiros contatos com a Organização Friends of Earth (Amigos da Terra);

· 1981 -a Ação Democrática Feminina Gaúcha – ADFG tornou-se um núcleo da Amigos da Terra (ADFG – Amigos da Terra);

· 1982 - A partir da participação na Comissão de Saúde e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, deu-se início a um trabalho sério, constante e contínuo que resultou na Lei nº 7747 – Lei dos Agrotóxicos – aprovada em sua totalidade no ano seguinte;

· 1983 -Giselda e Magda Renner recebem, no mês de setembro, credenciamento para participar dos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos, Segurança Social e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa;

· 1985 – A ditadura termina após 21 anos de chumbo no Brasil.

- No novo ambiente político e institucional da redemocratização, a ADFG -Amigos da Terra participa junto ao Movimento Gaúcho Constituinte (MGC) que reunia cerca de uma centena de entidades sociais, comunitárias, estudantis, religiosas, para debater a necessária atualização da Constituição. A ADFG havia sido co-fundadora da Frente Nacional pela Ecologia na Constituinte.

· A entidade defende a nova lei gaúcha de controle dos agrotóxicos, dentro da campanha Dúzia Suja – os 12 agrotóxicos mais perigosos – em um encontro no Canadá, no Congresso dos Estados Unidos e em um debate com representantes da indústria química, em Londres;

· Promovem atos em favor das vítimas da bomba de Hiroshima e contra o programa nuclear. Entre eles: “A rosa de Hiroshima”, na Rua da Praia; “International Shadows Project”, na Esquina Democrática; “Vigília Telenuclear”, massivo envio de mensagens durante o aniversário do lançamento da bomba e a “Vigília pela vida”, caminhada pela rua dos Andradas e entrega de manifesto ao governador do RS Amaral de Souza;

· 1987 – Em junho, integra a Frente Ecologista à cúpula da Assembleia Constituinte, liderada por políticos como Ulysses Guimarães, Mário Covas, Bernardo Cabral e Almir Gabriel.

· 1988 – Participa ativamente dos debates e construção da Carta Magna do Rio Grande do Sul.

1992 - Durante a campanha contra o Projeto de Patenteamento dos Seres Vivos, a Assembleia Legislativa promoveu, com o apoio da entidade, um seminário sobre “Lei das Patentes e Soberania Nacional”;

1995 – Participam de ato público contra a Lei das Patentes, no Parlamento gaúcho, em 27 de novembro, quando é elaborado um manifesto, assinado por 43 deputados estaduais com os líderes de todos os partidos e mais 36 entidades da sociedade civil. Levam o documento ao Congresso Nacional;

1998 - Em julho a ADFG- AdT termina oficialmente, mas os objetivos continuam com o Núcleo Amigos da Terra (NAT), realizando um grande evento no Plenarinho da Assembleia Legislativa do RS para comunicar as modificações ocorridas;

· 2001, em Porto Alegre, o NAT se associa às manifestações contra os transgênicos, campanha à qual empresta o seu apoio, desde a década anterior;
Realiza campanha pela preservação da Atmosfera : “Energia Sim, Degradação Não!”

· 2002 - dando continuidade à campanha por ciclovias, promove passeio ciclístico em parceria com Associações de Ciclistas de POA, finalizando com entrega de abaixo-assinado ao prefeito de Porto Alegre; 

· O NAT assume a Secretaria-executiva do Elo do Rio Grande do Sul na Rede de Ongs da Mata Atlântica;

2002 – Em 14 de maio, morre o líder ambientalista José Antonio Lutzenberger ao 75 anos em Porto Alegre.

2003 - Participam do “Fórum Internacional das Águas – A Vida em Debate”, POA; 

2004 – Publicam o relatório completo de 40 anos de luta ecológica da ADFG.

2005 - Em maio de 2005, a Assembleia geral da rede de ONGs da Mata Atlântica elege sua nova coordenação e o NAT voltou a integrá-la como membro titular.

2006 - No combate à ampliação de usinas a carvão mineral no sul do Brasil, o NAT participa ativamente da campanha pelo “não” no plebiscito sobre a instalação da CTSul em Cachoeira do Sul. Ao ingressar como litisconsorte ativo em ação civil pública contra os empreendimentos a carvão da região do Baixo Jacuí, o NAT obtém a cassação, pela Justiça Federal, da licença da Usina Termoelétrica de Jacuí, inviabilizando assim sua implantação.

2007 - Dando seguimento à campanha contra a expansão das monoculturas de árvores exóticas, o NAT empenha-se no debate crítico ao modelo de expansão do setor da celulose no estado e na busca por alternativas, realizando, em Pelotas, em maio, o seminário “Pampa & Sustentabilidade: em busca de opções produtivas”.

Nos últimos anos de existência, o Parlamento gaúcho reconheceu suas trajetórias bem como louvou a jornada e premiou a contribuição das três para toda a sociedade. Em 5 de junho consagrado como o Dia Mundial do Meio Ambiente, por iniciativa do deputado Adão Villaverde foi concedida às três pioneiras a medalha da 52ª Legislatura do Parlamento, com o agradecimento que todos renovaram mais uma vez naquele dia.

2008 - Entregam a todos os vereadores de Porto Alegre, um ofício posicionando-se contra o projeto do Pontal do Estaleiro na capital gaúcha;
– Lançam publicação e coleção de cartuns na Conferência Internacional de Biocombustíveis.

2009- Recolhem 2.600 assinaturas antes nos shows da banda Radiohead no Brasil, para apoiar a aprovação de projetos de lei de incentivo às energias renováveis descentralizadas que tramitam na Câmara dos Deputados em Brasília.
Em Medelin, na Colômbia, a Amigos da Terra Brasil participa da abertura das atividades paralelas organizadas pela sociedade civil em torno da 50ª assembleia anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), levantando o tema dos agrocombustíveis, como agravante das injustiças climáticas, ao seminário "Escola Climática: construindo e mobilizando por Justiça Climática".

2012 Em Goiás, a NAT Brasil participa da IX Assembleia Geral da Rede Brasil, assinando declaração conjunta com outras organizações e coletivos, assumindo compromisso de fortalecer o processo de convergência das lutas sociais no Brasil.

Em 2012, em 3 de maio, falece Hilda Zimmermann.

Também em 2012, no dia 4 de março, morre Giselda Castro.

Magda recolhe-se ao silêncio do mal de Alzheimer até 11 de outubro de 2016 quando, aos 90 anos, encerra o ciclo simbólico das pioneiras da ecologia.

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